sexta-feira, 13 de abril de 2018

Eu te amo

Abril é um mês que me deixa um pouco mais sensível. Inevitavelmente lembro com muitas saudades que dia 23 seria o aniversário da minha avó materna, Maria Emília. Ela se foi no início da Copa da Alemanha, em 2006, ou seja, há 12 anos me fazem falta sua companhia, seu sorriso, sua leveza, seu amor.

Porém, antes que as lembranças sejam motivo de tristeza, me esforço para refletir sobre uma visão muito bonita e sensível de como lidar com essa separação, que foi mostrada na animação "Viva, a vida é uma festa". Os mortos não devem ser lembrados com tristeza, muito menos esquecidos. Na história, que retrata o "Dia dos Mortos", no México, aqueles que já se foram são festejados, suas histórias são contadas às novas gerações, com alegria e respeito, exatamente para nunca caírem no esquecimento, afinal, fazem parte da história da família.

Minha avó Maria Emília merece muito ser festejada, lembrada e ter sua história passada aos bisnetos e próximas gerações.

Pensem numa pessoa especial, com jeito doce de falar, calma, com um sorriso encantador, extremamente amorosa e paciente.

Ela amava animais, sempre tinha pelo menos 3 cachorros em casa, acolhia todos os gatos que aparecessem e decidissem morar em seu quintal, dava nomes a todos.

Ela adorava comer queijo branco com bolacha água e sal (sempre dividindo, um pedaço pra ela e outro pro Fred, seu basset gorducho e mal humorado, que detestava pessoas beijando-se ou abraçando-se perto dele), amava pudim de leite e não podia faltar um pote com bolachas de waffle de chocolate na mesa da sala para ela dar aquela beliscada enquanto assitia tv e fazia tricô.

Falando em tricô, ela tricotava muuuuito rápido! A produção era intensa e todo mundo da família ganhava frequentemente blusas feitas por ela. Os netos eram presenteados com camisolões de tricô (feitos com todas as sobras de lã das receitas que havia feito) para colocar por cima do pijama em noites muito geladas.

Minha avó não sabia nadar e morria de medo de galinhas (nunca descobrimos o por quê).

Ela não tinha uma relação hierárquica com as pessoas que trabalhavam na casa dela, muito pelo contrário, era um relação de tanto carinho, tanta proximidade, tanta liberdade, que a Maria, sua companheira fiel, esteve ao lado dela até o último minuto, não como funcionária, mas como uma amiga fiel e amorosa e eu tive muita sorte, ganhei assim mais uma avó maravilhosa.

Ela não era vaidosa, não usava maquiagem, não pintava os cabelos, mas vivia querendo me levar para fazer limpeza de pele na Ana Pegova. Talvez esses convites fossem apenas um aviso: "ou você aceita ou eu te pego de jeito para espremer uns cravos". Ela adorava ficar cutucando os cravos de quem desse uma bobeira perto dela.

Ela tinha mania de arrumação, vivia ajeitando os porta-retratos que estavam "tortos" na decoração da sala (acho que herdei isso, juro, é incontrolável, peço desculpas a todos os envolvidos nas minhas neuroses por arrumação).

Quando fui morar sozinha, ela me visitava e ia direto para a cozinha lavar qualquer louça que eu tivesse deixado na pia, mesmo se fosse apenas um copo.

Ela era extremamente generosa. Novamente voltando ao ano em que fui morar sozinha, ela comprou várias coisas que eu precisava para o novo apartamento e sempre foi assim, precisando de alguma coisa, lá estava ela pra dar um jeitinho e comprar.

Ela adorava dirigir, sempre a no máximo 30km por hora e dizia que adoraria ser motorista de ambulância!!! Era uma vontade real, não brincadeira!!!

Ela se divertia assistindo filmes tipo "sessão da tarde", dava muita risada toda vez que assistia pela milésima "Mudança de Hábito", com Whoopi Goldberg, ou "Casamento Grego".

Ela adorava música e entre os preferidos estavam Frank Sinatra e Chico Buarque.

Minha avó se foi antes da Sofia nascer. Nem chegou a me ver grávida. Porém, tive a sensação de que ela sempre esteve ao meu lado nos 9 meses de gestação e, principalmente, nas longas noites mal dormidas dos primeiros meses da Sofia. Em uma das madrugadas difíceis, em que, é até meio óbvio dizer, eu estava exausta, Sofia não dormia de jeito nenhum. Já tinha mamado e trocado fraldas algumas vezes. Finalmente pegou no sono, coloquei-a cuidadosamente no berço e fui tentar dormir. Pra meu desespero, ouvi um princípio de choro... parou... começou a chorar de novo. Eu estava exausta e tentando dormir de novo, relutei em levantar e ir ao quarto dela. Então ouvi, vindo do quarto da Sofia, uma mulher cantando docemente "Eu te amo", do Chico Buarque:

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

Meu coração disparou, Sofia instantaneamente parou de chorar. Eu não sabia se chorava de emoção ou se aproveitava e dormia. Claro, não consegui dormir, mas também não levantei da cama. A mulher parou de cantar, Sofia dormiu por horas e eu fiquei ali pensando no que tinha acabado de acontecer. Não posso ter certeza, claro, mas acredito que minha avó deu uma passadinha para ver a bisneta e me ajudar a descansar um pouco.

O aniversário dela se aproxima e espero que tenha conseguido vir nos fazer outra visitinha ontem e aproveitar um presente de aniversário adiantado muito especial...  Eu e minha mãe ganhamos, do meu irmão e da minha cunhada, ingressos para o show do Chico Buarque. Nem preciso dizer que foi emocionante. No repertório, várias antigas como "Todo Sentimento", "Gota D´ Água", "Sabiá"... Não cantou "Eu te amo", infelizmente, mas compensou com muitas outras maravilhosas. Chico encheu nossa noite de boas lembranças, de amor, de alegria e da certeza de que a vida é boa (muito boa!), mesmo com suas eventuais e inevitáveis dores e separações. Depende de nós manter tudo vivo na memória e no coração diariamente.



As camisolas de lã :)

Pedro com o ranzinza fofo Fred

Chupando dedo no colo da vó...

Minhas 3 avós

Ontem, no show do Chico