domingo, 3 de dezembro de 2023

"Pedágio": sutileza e habilidade de enfiar o dedo na ferida do Brasil profundo

Lembro bem da época em que ir ao cinema aos finais de semana era um programa disputado, quase uma missão impossível se não fosse planejada com antecedência. Não que eu tenha saudade da frustração de chegar ao cinema e estar tudo esgotado... Porém, adoraria um meio termo.

Um filme que eu estava de olho há tempos (ouvindo muito sobre ele em podcasts, rádio e reportagens sobre festivais de cinema) entrou em cartaz nesta semana. Tem sido feita uma campanha em defesa do cinema nacional, pedindo que o público não espere, que vá na semana de estreia. Essa seria uma maneira de garantir bilheteria e manter (ou, que sonho, ampliar) o número de salas de exibição de filmes nacionais.

Dessa forma, ontem, apoiando a campanha e matando minha vontade de ver "Pedágio", fui verificar as opções de salas, horários e a disponibilidade ingressos. Triste constatar que um filme premiado, que está rodando o mundo em festivais, pode ser assistido em apenas meia dúzia de salas em São Paulo. E pior, sem lotação. Comprei ingresso com facilidade.

Qual será o futuro do cinema? Como resgatar o público perdido durante a pandemia, com a mudança de hábitos e a invasão dos streamings?

Bom, mas vamos à parte boa. O filme!


"Pedágio" é o segundo longa da cineasta Carolina Markowicz. Eu espero que seja o segundo de uma longa lista de produções de Carolina, porque fazia realmente muito tempo que um filme não me surpreendia tanto.

Carolina convida o público a furar a bolha, a entrar num Brasil profundo e muito mais comum do que se imagina. Com diálogos precisos, "Pedágio" enfia o dedo na ferida com habilidade, sutileza e elegância. Somos conduzidos a conhecer melhor e refletir sobre a dinâmica das igrejas, a violência, o conservadorismo e, principalmente, a hipocrisia.

Com um elenco em perfeita sintonia, fotografia inusitada, ótimo roteiro e direção, "Pedágio" é memorável. É um filme tão complexo, com tantas camadas de crítica e sensibilidade. que é difícil fazer uma sinopse à altura do filme e sem spoilers

Esbanjando humor ácido e irônico, o filme arranca risos nervosos da plateia. O desconforto com os absurdos, a violência implícita nas falas, as inversões de valores, as condições precárias de trabalho, o machismo e o moralismo transbordam na tela. Tudo com tanta delicadeza que o filme termina, mas não vai embora. Sem dúvida, frases como a de Suellen (Maeve Jinkings) para o filho Tiquinho (Kauã Alvarenga) vão ecoar por algum tempo:


- "Filho, você não percebe que eu só estou querendo te proteger? Você acha que as coisas são fáceis lá fora"

- "Lá fora, mãe?!"


"Pedágio" não está na ficção. Ele é o Brasil. Ele está ao seu lado.